A paz, invadiu o meu coração
De repente me encheu de paz
como se o vento de um tufão
arrancasse os meus pés do chão
onde eu já não me enterro mais
A paz, fez o mar da revolução invadir meu destino
A paz, com aquela grande explosão
Uma bomba sobre o Japão, fez nascer um Japão na paz
Eu pensei em mim, eu pensei em ti, eu chorei por nós
Que contradição, só a guerra faz nosso amor em paz!
Eu vim, vim parar na beira do cais
onde a estrada chegou ao fim, onde o fim da tarde é lilás
onde o mar arrebenta em mim, o lamento de tantos ais!
(Gilberto Gil)
http://br.musicamp3.com/video/musica/Gilberto_Gil/irpq3fQ2l-s?f=videos/Gilberto_Gil_-_A_Paz/http://www.youtube.com/watch?v=2oTeEmYunU8A palavra-chave da letra desta música, por mais paradoxal e contraditória que pareça, é a guerra. O poeta, quando disse "Que contradição, só a guerra faz nosso amor em paz!". Que amor e que guerra estão sendo travadas? Poderíamos interpretar a letra da música como sendo dois amantes, que têm lá seus problemas, como se vê tanto em novelas de televisão, brigam e então se faz aparecer a paz. Mas sinto que esta letra transcende um pouco a relação entre duas pessoas. Na realidade ela trata da relação de uma pessoa consigo mesma. A "grande contradição", já vem sendo cantada, já vem sendo ensinada, já vem sendo demonstrada há milhares de anos.
Esta grande contradição da busca da paz através da guerra foi o próprio Krishna, há milhares de anos passados, que na tão conhecida Bagavád-Gita onde Ele, como Mestre encarnando a voz de Deus, orienta Arjuna, o príncipe, na sua grande batalha. E que batalha é essa? Khrishna diz, dirigindo-se ao príncipe, "deves estar atento ao teu dever. Tu és o príncipe da casa dos guerreiros. Tens por dever combater com resolução e heroísmo. O dever de um soldado é combater e combater bem. O combate justo honra o guerreiro, e abre-lhe a porta do céu. Se desistires da legítima luta pela verdade e pelo direito, cometerás um grande crime contra a tua honra, contra o teu dever e contra o teu povo".
A guerra, neste caso, é travada contra o nosso ego que é, na realidade, o grande inimigo e o grande empecilho à nossa paz interior. Enquanto nós não vencermos esta guerra, enquanto esta batalha não for vencida, enquanto não compreendermos essa grande contradição que a guerra traz, não vamos ver a paz invadindo o nosso coração, não vamos ver de repente o nosso ser se encher de paz. Então, por mais contraditório que pareça, por mais paradoxal que pareça, a paz interior começa com uma guerra, uma grande batalha. Esta batalha leva a vida inteira, e não somente esta vida terrena, limitada, mas também em outros planos da existência.
O nosso processo de aprimoramento espiritual não tem fim, porque no momento em que acharmos que alcançamos a perfeição, na realidade vamos simplesmente passar o atestado do quão limitados e infantis somos, em acreditar que chegamos ao ápice de maturidade, de compreensão. Na realidade, a nossa busca eterna vai ser cada vez mais aproximarmo-nos daquele Manancial da Verdade, Manancial da Paz, aquele grande Oceano, Deus, o nosso Criador, que é objeto da busca de todos nós. Por qualquer nome que O chamemos, de qualquer forma que O vejamos, na realidade este Oceano ilimitado se encontra à nossa disposição; mas o esforço de chegarmos até Ele passa por esta batalha que Krishna diz, é uma luta legítima. E Ele apresenta os instrumentos para que esta batalha possa ser vencida.
Todos os Profetas e Mensageiros Divinos, e propositadamente escolhi Krishna, porque realmente simboliza muito bem esta questão da luta contra o ego, desta vitória contra a nossa realidade inferior, contra o nosso ego que pode simbolizar também o nosso lado material, o nosso apego a este mundo dos nomes, das paixões, dos quereres. Na realidade quem é o nosso ego a não ser o momento em que nós volvemos o espelho do nosso coração, o espelho da nossa alma, para as coisas terrenas e limitadas. Não me refiro aqui ao "ego" do elemento da nossa psiquê e sim ao ego como sendo sinônimo de apego às coisas egoístas, apego aos quereres, apego às nossas vontades. No momento em que este espelho se volve à limitação, esta coisa chamada ego, é refletido neste espelho que é o nosso coração, a nossa alma, pois é capaz de refletir tudo aquilo que se coloca a sua frente. Se nós colocarmos as coisas materiais, se colocarmos os nossos quereres, as nossas vontades, as nossas paixões, ele vai refletir isto; mas se nós volvermos este espelho para coisas mais sublimes, mais celestiais, coisas que nos levam a nos desprendermos deste mundo, a nos desapegarmos, apesar de estarmos vivendo nesta existência, vamos nos surpreender com a alegria e paz que alcançaremos. Bahá'u'lláh destaca um poema persa que diz "sábio é aquele que no mar se acha seco, aquele que no fogo esfria" ou seja, que independe do meio que o cerca: ele é o que ele é. Ele não é um reflexo, um resultado do meio que o cerca, mas simplesmente aquilo que ele é. E esta é a nossa busca, esta é a verdadeira paz.
Esta paz interior tão almejada é a vitória nesta guerra. Mas quais são os instrumentos? Como ganhar esta guerra? Como entrar para esta batalha? O instrumental que Krishna deu há cerca de 3, 4 mil anos passados obviamente devia ser adequado à realidade do homem da época. E a cada época aparece um novo Iluminado, um novo Manifestante, um novo Profeta, que apresenta o instrumental para vencer esta guerra. Porque, na realidade, à medida que o homem vai evoluindo e, sem dúvida, apesar de todas as guerras existentes na história humana há um processo de evolução. Uma mente imparcial, sem dúvida, vai considerar que o mundo é ruim, a sociedade é ruim. Há algo no entanto, que mostra que nós somos, apesar de toda a nossa imaturidade, apesar de toda a loucura que o mundo de hoje vive, diferentes dos homens da caverna, para colocar um extremo bem grande. Existe algo que nos diferencia dos hebreus há 5 mil anos passados, ou dos povos árabes na Península Arábica, há cerca de 1.500 anos passados. Então sem dúvida existe uma evolução. E esta evolução leva também a uma necessidade de um instrumental renovado.
Bahá'u'lláh, em um de Seus escritos, diz que cada Profeta que o Criador Todo-Poderoso e Incomparável se propôs a enviar aos povos da terra foi incumbido de uma mensagem, e inspirado a agir de uma maneira que melhor satisfizesse os requisitos da época em que aparecesse. Ou seja, cada Profeta, cada Mensageiro, que aparece de tempos em tempos, em lugares diferentes, têm uma missão específica. Ele se apresenta numa forma que satisfaça às necessidades dos indivíduos daquela época. É como se, fazendo uma analogia, o mundo fosse uma grande escola, onde nós passamos pela 1a série, pela 2a, pela 3a, etc. e a cada série, os professores, que naturalmente têm todo o conhecimento da matéria, apresentassem aquela matéria que é suficiente, necessária e adequada à compreensão do aluno daquela série. Nós é que, infantilmente, quando passamos para a 5a série, e o professor nos ensina os primeiros conceitos de que 1 menos 2 pode dar algum resultado, que não é necessariamente uma conta errada, dizemos: "Puxa vida, mas como o meu professor da 4a série era ignorante! Ele não sabia que 1 menos 2 era igual a -1 e me dizia que eu estava errado. Veja que professor incapaz, e como este agora da 5a série é inteligente e capaz". Na realidade os pobres professores das outras séries simplesmente transmitiram aquilo que nós éramos capazes de compreender e assimilar, e agora nos ensinam, não por um mérito especial do professor da 5a,mas por mérito nosso, que somos capazes de entender este conceito.
Cada Profeta apresenta os requisitos necessários para uma determinada época. O desígnio, o propósito de Deus em mandar Seus Profetas aos homens é duplo e agora vamos chegar a esta questão do instrumental: o primeiro é livrar-nos da escuridão da ignorância e guiar-nos à luz da verdadeira compreensão. O propósito do Mensageiro de Deus é de nos tirar desta escuridão da ignorância, nos mostrar a luz da compreensão e dizer: "Olha este é o caminho!". O segundo, é assegurar a paz e tranquilidade do gênero humano, provendo todos os meios pelos quais estes possam ser estabelecidos.
Então, o propósito desses Luminares, Mensageiros, Profetas, é nos dar os meios e o instrumental para que possamos alcançar a paz e tranquilidade. Começamos com Krishna e vamos terminar com Gilberto Gil, que não é um profeta, nem um mensageiro divino, mas uma pessoa que tem uma sensibilidade capaz de detectar mais uma vez que nós precisamos de um instrumental para esta guerra, para esta batalha.
O primeiro instrumento que todas as religiões, quer do passado, quer do presente, quer do futuro ensinaram, ensinam ou ensinarão, se refere a nós próprios, à nossa transformação individual. O grande desafio é se perceber que o que falta para alcançar a nossa paz não é aquilo que a gente fala normalmente, como por exemplo "olha, minha vida seria tão boa se fulano desaparecesse da minha frente, ele me atrapalha, me atazana a vida o tempo inteiro e se eu conseguisse me livrar de fulano, beltrano ou de sicrano, eu alcançaria a paz. Porque eu só tenho este sujeito me atrapalhando a vida". Colocamos fora de nós o campo da batalha, enquanto que a batalha tem que se travada dentro de nós. Desde pequenos nos negamos a desenvolver esta batalha, esta luta, esta guerra. Porque ela dói. É uma batalha muito difícil. Porque não só você tem que lutar contra aqueles que são seus personagens internos, que são os valores que você trouxe dos seus pais, dos seus familiares, são os valores que a sociedade lhe deu, e isto é uma batalha muito difícil porque perder ou negar estes valores, ou transformá-los em algo diferente é realmente muito dolorido, e ninguém quer sofrer.
Deus, o Criador, não é um velhinho barbudo, sentado em um trono com um cetro na mão, mandando raios que fazem morrer, nascer, crescer e desaparecer. Não seria o desígnio Dele que nós tivéssemos que sofrer, porque se Ele é todo bondade, todo misericórdia, se Ele é amor, perdão, se Ele é tudo aquilo que consideramos como as qualidades e elementos positivos, o sofrimento não pode ser um elemento maquiavelicamente colocado na criação: "olha, tem isto tudo de bom mas vocês vão ter que sofrer um pouquinho para ver o que é bom para tosse". Se Ele não sofre, porque iria querer que Suas criaturas sofressem? Na realidade para evitar que suas criaturas sofressem, e o sofrimento nada mais é do que o nosso comportamento inadequado perante as grandes situações que a vida nos apresenta, Ele mandou-nos um manual. É a mesma coisa que um carro: se o sujeito não sabe que tem que tem 2a, 3a , 4a ou 5a marcha ele fica só na 1ª. O motor sofre, o ouvido sofre, as peças sofrem, todo mundo sofre. Parece que aquele carro é uma coisa horrível! "Meu Deus do céu, ô bicho danado de fazer barulho e não sair do lugar, fica o tempo todo preso, engasgando!". Na realidade a falta do conhecimento do automóvel levaria à má utilização do mesmo.
Conta-se uma história de um peão de fazenda que tinha um armário muito bom onde ele colocava as suas botinas. Este armário muito bom, nada mais nada menos era que uma geladeira, mas como ele não sabia como é que se usa aquilo, nem tinha energia elétrica, a geladeira para ele era um ótimo armário, só que totalmente mal utilizado. O propósito da nossa existência não é sermos geladeiras para serem usadas como armários. Mas isto é o que fazemos conosco. Nos portarmos neste mundo da forma inadequada. O primeiro elemento dentro destes propósitos para o qual ao Profetas e Mensageiros de Deus se manifestaram é assegurar a paz e a tranquilidade do ser humano, provendo-lhes todos os meios. O primeiro meio a que Eles se referem é a da transformação individual. Aí devemos nos lembrar que somos somente responsáveis por uma única vida, e esta vida é a nossa.
Existe uma analogia que aparece nas escrituras bahá'ís que é muito interessante, que diz que a nossa vida é como se estivéssemos buscando controlar um arado que é puxado por um animal. Hoje em dia todos os arados são mecânicos e puxados a trator, mas ainda há no nosso Brasil certas áreas em que o fazendeiro, o lavrador, tem um cavalo com as rédeas colocadas em sua mão, e o corpo do cavalo vem trazendo outro conjunto de cintas que se prendem ao arado. A idéia é que o cavalo puxe o arado, que vem rasgando a terra. Para conseguir manter a linha reta do arado, deve-se controlar o cavalo com as rédeas, para que ele não vá nem rápido, nem para a direita, nem para a esquerda. Temos que segurar também na mão o arado para que se coloque a inclinação certa no solo para conseguir rasgar o chão. Para o homem do campo isto é talvez tão fácil quanto para nós é dirigir carros. (as vezes um homem do campo pode pensar "Que coisa incrível, o sujeito aperta os pedais, vira o volante, muda uma marcha, aperta os sinais e faz tudo ao mesmo tempo!"). Mas há um segredo nesta coisa do arado: se você por um momento sequer desviar o seu olhar da linha que você quer centrar, você erra tanto que não tem mais como consertar.
Neste exemplo que é dado neste texto bahá'í quer-se dizer que somos responsáveis por uma única vida, como se fosse um lavrador que tem que cuidar do seu arado. Somos responsáveis por um único arado que é o nosso. Se formos olhar para o arado do vizinho, no momento que desviarmos o olhar, por um segundo que seja, perdemos a nossa linha. Então, sem dúvida o primeiro elemento essencial é volvermos nossa visão para nós mesmos, e buscarmos dentro de nós os elementos desta batalha e não fora de nós. O responsável pelos males da nossa existência não é o nosso vizinho, não é o nosso companheiro de trabalho, não é o nosso marido, não é a nossa mulher, não é o nosso filho, não é nada disso. Na realidade temos que travar esta batalha dentro de nós. Existe a batalha, existe o instrumental e o primeiro instrumento é volvermo-nos para nós mesmos. Se buscarmos dentro de nós os nossos inimigos essenciais, e o nosso grande inimigo é o nosso ego, a nossa vontade egoísta, o nosso querer, aquilo em que me sinto o melhor, o superior, o mais merecedor do que os outros. Sem dúvida, podemos trabalhar isto através da leitura, da meditação e através da prática. Ou seja, o grande desafio nosso é transformarmos palavras em ações. O mundo está cheio de boas intenções, boas palavras, discursos, pronunciamentos, teses. Todas elas são muito bem intencionadas. Mas a questão toda é como conseguimos transformar palavras em ações. Aquilo que conseguimos ler, como é que vamos assimilar e transformar numa nova atitude, ou numa mudança de nossa atitude. E aí começa a batalha. Porque na realidade o nosso querer, as nossas vontades, as nossas paixões vão dizer: "Não! Mas porque mudar, você é único, você merece toda atenção, será que você não vai olhar um pouquinho para você mesmo?" e fica um diabinho falando do lado de cá, e um anjinho do lado de lá, geralmente desprezado, e normalmente ganha a batalha o diabinho do lado de cá. E o anjinho do lado de lá se torna enfraquecido, e o diabinho do lado de cá, ou seja do seu ego que insiste no "você merece, você é alguém", ganha pois isto é melhor valorizado na sociedade atual. Através da televisão, há toda a propaganda e o marketing das coisas que estão envolvidas com a valorização do indivíduo. Desde a doutrinação que as crianças estão tendo com os desenhos animados (Eu tenho a Força!), entre outras, e o culto ao eu cada vez mais forte fazem com que o ego insistente, sem dúvida, vença.
Um dos elementos que podem ser considerados na tarefa de transformar palavras em ações é a oração. A oração tem o poder de transformação sobre nós e o poder de assegurar uma nutrição para nosso ser interior. Por oração eu me refiro a qualquer tipo de oração, desde que ela siga uma determinada regra essencial. E esta regra é colocada de forma muito interessante nos escritos bahá'ís quando dizem que:
"O verdadeiro devoto ao orar não deve esforçar-se tanto para pedir que Deus satisfaça seus desejos e vontades, mas sim que ajuste este e o faça conformar-se com a vontade de Deus. Só através desta atitude pode-se derivar aquele senso de paz e contentamento interiores que tão somente o poder da oração pode conferir".
Ou seja, no momento em que buscamos na oração um elemento de reforço interior, o bichinho do lado de cá que fica o tempo todo dizendo "olha, você merece, você é o máximo, você tem que ter toda a atenção do mundo; afinal, você é um indivíduo que tem a sua própria identidade, então que estória é esta de você se perder no meio do mundo?", passamos a ter a tendência de olhar para este bichinho e dizer "bom, na verdade, seria tão bom se a minha oração fosse atendida na forma como eu quero, como eu espero!". É aí que nos perdemos, porque, na realidade, não estamos cumprindo com o propósito que a oração tem. Se a oração significa comungar, significa este trocar de sentimentos e energias com um Ser superior, é daí que deriva a força para travarmos esta batalha. Esta força tem que vir de uma busca divina. A oração nos ajuda a fazer o ajuste dos nossos desejos para se conformarem com uma vontade superior.
Estamos agora tratando da batalha num nível diferente. Estamos agora buscando um aliado muito forte nesta batalha. Porque este aliado forte é a crença em Deus. No entanto, se falamos em oração e ela parece algo muito mecânico e automático, temos que estar atentos! Nossa sociedade também buscou transformar as coisas mais etérea, não palpáveis, em coisas que não merecem a nossa atenção, porque não são concretas, não são lógicas, não são racionais. A oração também se tornou uma coisa muito mecânica. A mecanicidade da oração fez com que ela perdesse o valor de algo que é capaz de nos mover.
O resgate de nossa espiritualidade passa por esta reconexão com Deus através da oração e meditação. Ao nos reconectarmos com um espírito vibrante e radiante, temos em mãos um instrumento fabuloso para travar a nossa guerra e alcançar as margens do oceano da paz interior.
Iradj Roberto Eghrari