Impossível não se comover com a tragédia do povo haitiano. Principalmente, porque os repórteres estão prontos para enfiar o microfone em qualquer buraco onde alguém esteja gritando por socorro ou chorando de fome. O desespero ganhou contornos jamais vistos na história desumana dessa tal humanidade. Mesmo as câmeras hiperrealistas e os sons em surround não conseguem traduzir a dimensão da violência que se abateu sobre aquela terra de escravos trazidos da África que convive com a sina de ser a África da América. Vive sua sina cíclica: quando não ocorre um terremoto, vem uma enchente; quando não é acossado por um político corrupto, é devastada pela violência das gangues armadas.
Diante da comoção mundial traduzida pela CNN e dos correspondentes internacionais dos grandes veículos de comunicação do Brasil, não há como não se emocionar. Em Ribeirão Preto e Franca, as pessoas estão se movendo para arrecadar fundos, alimentos, agasalhos e até eletrodomésticos para mandar para aquela terra devastada, sem terem a noção exata de como farão isso. Numa entrevista levada ao ar pela EPTV, uma distinta senhora falava às portas de um condomínio de classe média, que queria ajudar, mas não sabia como. O grande Vargas, pivô ídolo do basquete francano, também ressaltou a necessidade de ajudarmos as vítimas do terremoto. Porém, o próprio jogador afirmou que a logística para enviar a ajuda era complicada demais.
O Ministério da Defesa simplesmente pediu ao solidário povo brasileiro que deixasse o telefone e o endereço no site do ministério, porque não tinha como mandar os donativos para o Haiti. Isso quer dizer que há pessoas famintas e desesperadas, há pessoas dispostas ajudá-las, mas entre elas existe uma coisa chamada “logística” ou simplesmente “burocracia” e por isso a ajuda não poderá ser enviada. O Brasil é um país curioso. Mesmo depois de as pessoas saberem que muita gente lucrou com os donativos para as vítimas das enchentes de Santa Catarina, dispõe-se a ajudar um país pobre, devastado também por uma catástrofe natural, mesmo correndo o risco de se decepcionar novamente com as autoridades. E as autoridades jamais decepcionam, desta vez começaram a façanha na saída.
No entanto, paremos com as imagens do Haiti por um instante para nos questionarmos: Mas, o Haiti não é aqui? Qual a diferença entre o Haiti e o polígono das secas? Qual a diferença entre o Haiti e o Vale do Jequitinhonha? O Haiti e as favelas dos grandes centros urbanos não vivem a mesma falta de perspectivas? Não são habitadas por negros pobres, brancos pobres e negros que parecem brancos tanto quanto brancos que parecem negros? A fome não é a mesma? A escravidão não é a mesma? Qual a diferença entre a violência nas ruas de Porto Príncipe e as das favelas cariocas de São Paulo, Belo Horizonte, Rio de Janeiro, Recife ou Salvador? A miséria em tons tão graves, com música de fundo e cenário hiperrealista nos maltrata a ponto de nos levar a surtos de indignação, pelo menos até a hora do jantar. Depois do jantar, aí a conversa muda para amenidades, como sempre.
Nordeste do Brasil
Nordeste do Brasil
Nordeste do Brasil
Vale do Jequitinhonha
Vale do Jequitinhonha
Favela do Rio de Janeiro
Favela do Rio de Janeiro
Favela do Rio de Janeiro
São negros pobres, como os da África subsaariana. São negros pobres como muitos negros pobres de vários lugares pobres do mundo que ninguém se dignou a ajudar, porque ninguém os pintou com as cores fortes de um terremoto. O Haiti sempre foi miserável assim. Lá como aqui, morre gente todo o dia de miséria crônica. Lá morre gente do mundo inteiro que se viu arrastada por um sentimento de nome solidariedade, porque já tinha visto o que os outros só veem quando as tintas são carregadas com fundo musical em horário nobre. O Haiti é um microcosmo do submundo desse mundo turbulento onde vivemos. Lá também havia alguém para levar sopa para os pobres. Alivia a consciência, aquece o estômago, gera propaganda positiva, mas não resolve o problema.
Negros pobres como muitos brancos pobres enfiados em guetos, em mocambos, em palafitas, dentro de bueiros, debaixo de viadutos, no meio da caatinga, debaixo das marquises, a bordo de sacos de cola de sapateiro ou de cachimbos de crack ou de baganas de maconha. Atendidos em barracas improvisadas enquanto a branquinha americana solidária, sorridente, agradecendo o fato de ainda estar viva, aparece dando entrevista recostada em travesseiros limpos, em lençóis limpos, tão limpos quanto nossos sentimentos de religiosos fervorosos que só veem o que é mostrado, nunca o que está por trás do que se mostra. E, sem tintas fortes, as pinceladas da desigualdade não nos chamam a atenção.
O Haiti não é mais um país, tornou-se um estado de espírito. É a própria condição humana. O Haiti é o homem restituído à sua condição de bicho, de matilha, de alcateia. O Haiti geográfico está lá, no Caribe. O Haiti humano está impregnado nas nossas retinas, no mais ancestral da nossa consciência de grupo. Desafia nossa capacidade de discernimento. Impregna nossas retinas de fatos, fotos, imagens, dor, medo, desespero… Atira-nos descaradamente de cara no nosso medo de que um dia fracassemos tanto como civilização que cheguemos àquele estado de barbárie, porque a realidade espreme os grandes condomínios que se reforçam como fortalezas. Empurra os edifícios chiques contra a orla onde os pitboys e as badgirls se acotovelam em busca de fama e dinheiro fácil.
O Haiti é aqui. O Haiti está em mim. O Haiti está em ti. O Haiti está em cada um de nós.
Prof. Luiz Cláudio em terça-feira, 19/01/2010
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