sábado, 4 de setembro de 2010

Resgatando Memória



CALABAR




MARIO GENTIL COSTA
Médico e Ex prof. da UFSC
Data: Julho Agosto 2006


É engraçado! Nunca engoli essa história. Desde a escola primária, quando fui apresentado a Calabar – “o traidor” – senti ali o cheiro da má-fé e alimentei estranha simpatia por essa figura.
Afinal, por que justamente ele, um dos poucos alfabetizados entre os soldados brasileiros, iria trair os portugueses? Não teria tido um motivo sério, algum tipo de intuição que o levasse a tomar tão drástica decisão?
E à medida que amadureci, fui vendo confirmado um conceito que hoje tomo como axioma: a história, como nos é ensinada, é a versão do vencedor. Eis um exemplo: Tiradentes, traidor para os portugueses, virou mártir e herói brasileiro. O mesmo não teria acontecido com Calabar, se os holandeses tivessem vencido...? Resolvi escrever sobre ele depois de ler o livro histórico “CALABAR”, de Romeu de Avelar, publicado em 1938. Ali fica evidenciado, graças à pesquisa feita pelo autor com sobras da documentação da época, que o aludido traidor poderia ser visto como um herói. Bastaria, para isso, estudar-lhe a pessoa e analisar o espírito dos litigantes: Portugal e Holanda.
Segundo Nietszche, “a história não é feita de fatos, mas de interpretações”, e, segundo Napoleão, “não passa de um conjunto de mentiras sobre as quais se chegou a um acordo”. Já Samuel Butler diz que “como Deus não pode alterar o passado, é obrigado a depender dos historiadores”. Não é à toa que Millôr Fernandes, ao referir-se à Guerra do Paraguai, diz que “a história que nos foi contada aqui - na qual Solano Lopez é visto como um bandido - não é a mesma contada lá”, onde ele é um herói cultuado por todas as gerações de crianças guaranis.
Segundo Avelar, “Calabar, depois de ter sido considerado o maior herói do lado português na defesa do Arraial do Bom Jesus, desertou das tropas de Matias de Albuquerque e passou-se para os holandeses, simplesmente porque, como legítimo patriota, concluiu que os interesses do Brasil estariam melhor servidos do outro lado.”
Palavras do autor: “Calabar era o maior soldado brasileiro e o mais temido. Arguto e determinado, vira sua raça aviltada pela escumalha invasora de Portugal. Afinal, que era, no mundo civilizado, o humilhado Portugal, dominado, à época, por Felipe IV da Espanha? Um país de piratas oficializados, gananciosos e sem consciência, que infestavam o Brasil, preavam os bugres, surravam e vendiam os negros, sempre de olhos fitos e cobiçosos no açúcar, nos diamantes, no pau-de-tinta, nas índias púberes”.
E Matias de Albuquerque? O que fez quando aqui chegou em 1629? “Patuscadas, comezainas, orgias com vinhaças. Sua corte dava abrigo a nobres traficantes de escravos, peralvilhos, padres e turinas. Albuquerque era um [...] egoísta, que [...] não cumpria a palavra quando estavam em jogo seus interesses particulares, [...] abandonando à míngua as mulheres e crianças das cidades [...] que perdia para os holandeses, permitindo que a escória saqueasse os armazens e ateasse fogo a tudo que não pudesse ser carregado”.
De acordo com Avelar, eis o que Calabar mandou dizer a Matias de Albuquerque: “Dois anos de fidelidade e sacrifícios. E que recebi eu? Ingratidões, humilhações, prejuízos incalculáveis. Abandonei em Porto Calvo os meus negócios para acompanhar a bandeira luso-filipina no seu sonho de conquista peçonhenta dentro do meu próprio país. Mas, pelo que tenho presenciado e sofrido com os meus camaradas brasilienses, achei mais digno aliciar-me aos holandeses, mais civilizados, mais tolerantes, mais instruídos e menos cruéis. Sou o primeiro que se revolta contra o banditismo dos portugueses. [...] Escolho patrioticamente, entre dois conquistadores, o mais humano e culto. [...] Que direito têm Espanha ou Portugal sobre nós? Somos tratados como bichos. Os lusos [...] só querem explorar [...] o Brasil e fazer barriga nas indiazinhas. Não sou um traidor. Sou um homem de consciência e, por isso, um rebelde”.
Domingos Fernandes Calabar – o “traidor” da falsa História do Brasil – nasceu em Porto Calvo, Alagoas, em 1610. Informado antes [...], sabia perfeitamente que seu destino era a forca, quando, para evitar outras mortes, entregou-se ao inimigo [...].
Acredito que os alagoanos de Porto Calvo, que aprenderam a história contada por portugueses acobertados por padres e cronistas mentirosos, nada sabem sobre seu grande herói. Caso contrário, deveriam, em desagravo de sua memória, erigir-lhe, na praça principal, uma estátua que fosse, no mínimo, um palmo mais alta do que a cruz da igreja matriz...

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