sexta-feira, 9 de julho de 2010

2 de Julho: Data Nacional

Monumento 2 de Julho - Praça Campo Grande
Paulo Costa Lima
De Salvador (BA)

O Brasil pouco sabe sobre o '2 de Julho' e bem que deveria saber. O que aconteceu na Bahia no dia 2 de Julho de 1823 foi decisivo para todos os brasileiros.
Foi quando o Exército Libertador, tendo à frente o Batalhão do Imperador entrou finalmente na cidade que havia sido sitiada durante meses, sendo recebido com flores e homenagens pela população. Os portugueses, cerca de 4500 homens, haviam abandonado a cidade poucas horas antes, por mar.
Durante muitas décadas firmou-se o entendimento errôneo de que a data representava a 'Independência da Bahia'. Ledo engano. O correto é celebrar a Independência do Brasil na Bahia. Existe neste momento uma proposta em andamento no Congresso Nacional (de autoria da Deputada Alice Portugal, PCdoB-Ba) para a aprovação do '2 de Julho' como data nacional. Nada mais justo!
Basta lembrar que o exército dessa guerra, cerca de 10.000 homens, era composto por soldados vindos de muitas províncias - do Ceará e de Pernambuco, Alagoas, Paraíba e Sergipe, mas também fluminenses, mineiros e paulistas, além dos baianos, é claro, muitos deles filhos da África.
Na verdade, trata-se do nascimento do Exército brasileiro - um fato também pouco celebrado - e do batismo de fogo do seu patrono, o futuro Duque de Caxias.
A cena do 7 de setembro só adquire sua plenitude de sentido com a bravura popular que foi demonstrada na Bahia. Um exército inicialmente comandado por um francês, Labatut, mas que chega ao final do conflito sob as ordens de um brasileiro, Lima e Silva.
O '2 de Julho' é um novelo de narrativas. No plano de fundo, a "narrativa histórica", ou seja, os eventos memoráveis da entrada do Exército Libertador em Salvador no dia 2 de Julho de 1823, que por sua vez se inserem no processo mais amplo da guerra propriamente dita e de seus antecedentes.
Em torno desse núcleo vão se enovelando 185 anos de festividades de rememoração e de interação criativa com esses eventos originais e seus símbolos. E aí entra em cena uma outra dimensão da festa, a rica apropriação que dela fez o povo da Bahia, construindo uma espécie de civismo caboclo.
Fôssemos mais próximos de Hollywood e já teríamos inúmeros filmes projetando mundialmente a temática. Onde encontrar episódios mais marcantes? Uma mártir religiosa (Joana Angélica), batalhões voluntários, escravos lutando por liberdade, uma sertaneja que vira soldado, batalhas navais e campais...
Essa sertaneja que vira soldado - a ilustre Maria Quitéria de Jesus - está a pedir urgente uma mini-série nacional. Uma mulher, entre 25 e 30 anos que viaja cerca de oitenta quilômetros para se alistar, vestida com as roupas do cunhado, de quem se apropria do nome, passando a ser chamada de soldado Medeiros. Aparentemente casa durante o conflito e o marido morre.
Recebe menção explícita de bravura do General Lima e Silva e após a guerra vai ao Rio de Janeiro para ser condecorada por D. Pedro I. Lá no Rio chama a atenção da historiadora Maria Graham, amiga de Leopoldina, que a descreve como uma mulher feminina, sem nada "que desabone sua moral". Sabemos também através desta autora que Maria Quitéria se alimentava de forma comedida, ovos e peixe, e que também enrolava um cigarro de palha após as refeições. Vai ser um sucesso a mini-série!
A mistura de festa popular e comemoração cívica que preenche as ruas de Salvador por ocasião do '2 de Julho' assumiu ao longo dos anos a complexidade de um poli-festival: cívico, político, cultural, religioso e festeiro (há uma longa tradição de batuques, bailes e bandos anunciadores).
Na verdade, o cortejo que sai pelas ruas de Salvador é apenas um dos eventos - a rede festiva se espalha por diversos municípios convocando identidades múltiplas, do vaqueiro ao índio, e antigamente também acontecia em vários bairros e datas distintas, havendo dessa forma '2 de Julho' em agosto, setembro... (uma comunidade de Salvador ainda mantém essa tradição).
Como entidade do panteão afro-brasileiro, o Caboclo recebe atenção especial nesse dia - visitação, bilhetes colocados nos carrinhos polarizam o cortejo, festas de santo - mostrando como os dois universos se interconectaram. Do lado católico há também interação significativa. Basta cantar o Hino ao Senhor do Bonfim: "Glória a Ti neste dia de glória, Gloria a ti redentor que há cem anos. Nossos pais conduziste à vitória, pelos mares e campos baianos...", estamos em pleno '2 de Julho'; o hino é de 1923.
Como festival político tem uma força incrível. Em época de repressão sempre precisou ser controlado com mão de ferro - tentando neutralizar a formação de novas lideranças carismáticas. Nos dias de hoje, de democracia recente, qual a legenda que arriscaria ficar de fora?
Mas vejam que não é coisa nova. Os abolicionistas costumavam anunciar alforrias justamente nesta data. Em 1973, sesquicentenário da festa, quem foi o convidado de honra? O presidente-ditador Garrastazu Médici.
Ou seja, a sacralidade da ocasião, a sacralidade do Caboclo, digamos assim, sempre foi disputada palmo a palmo. Mas de onde vem? Ora, vem do valor que a população atribui à própria festa, seu peso histórico - nosso atestado de nascimento como sociedade política - e graças ao apelo dos seus símbolos, uma resultante da interação centenária com as representações construídas socialmente.
Como diz o pesquisador João Reis, "o Caboclo pode ser visto como uma representação baiana da utopia popular, totem da justiça e da abundância. Afinal, ele representa ou não a vitória sobre a tirania e o estabelecimento do império da liberdade?" Mas também assume a feição de uma entidade com a qual se negocia a difícil sobrevivência cotidiana - Cf. prefácio de Algazarra nas Ruas de Wlamira Albuquerque, ambos, livro e prefácio, imprescindíveis.
A potencialização da festa precisa rimar com essa vocação libertária do civismo caboclo. Deve, portanto, evitar o caminho da homogeneização (já temos o exemplo do Carnaval). Deve levar em conta o grande potencial de atrativo histórico e cultural e pensar em termos de um verdadeiro ciclo. Mais importante ainda: deve se apoiar em programas educacionais de peso - embora muito pouco exista nessa direção.

Um comentário:

  1. Gostaria de saber se no monumento da praça 2 de julho tem algum busto ou brasão de armas do Visconde de Magé (responsável pelas tropas brasileiras que expulsaram os portugueses do Brasil).
    Também gostaria de saber se existe algum retrato do Visconde de Magé no palácio estadual da Bahia ou da prefeitura de Salvador.
    Att.

    André Ricardo
    e-mail artnetto@uol.com.br

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