segunda-feira, 9 de novembro de 2009

Apartheid Genético

Classificação racial segregacionista inibiu miscigenação nos Estados Unidos
Fabrício Marques - Pesquisa FAPESP

Negro é expulso de vagão de trem na Filadélfia: desenho de autor desconhecido publicado em 1856 na revista Illustrated London News. © Blibioteca do Congresso dos Estados Unidos

Os Estados Unidos orgulham-se de haver assimilado um caldeirão de culturas e raças – o melting pot é freqüentemente apontado como uma das alavancas do progresso da grande potência. Daí a surpresa do geneticista Sérgio Danilo Pena, professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), ao analisar seqüências de DNA mitocondrial de norte-americanos caucasianos armazenados no banco de dados de uso forense do FBI, a polícia federal do país, em busca da origem genética dos brancos dos EUA.

O pesquisador encontrou um índice de miscigenação excepcionalmente baixo. Apenas 3,1% das amostras revelavam algum traço de ascendência africana ou indígena. Foram analisadas amostras de 1.387 indivíduos. Apenas 31 exibiam traços genéticos asiáticos e ameríndios, enquanto outras 13 tinham linhagens de DNA africanas. O número contrasta fortemente com os achados em populações que se declaram brancas no Brasil e em países da América Latina e também na população negra norte-americana. Nesses grupos, a miscigenação se caracteriza por um componente africano mais evidente do lado materno, mas uma contribuição européia no lado dos genes masculinos, um sinal também de exploração sexual das mulheres negras pelos homens brancos na época da escravidão.

No artigo “Sex-biased gene flow in african americans but not in american caucasians”, recém-publicado na revista brasileira Genetics and Molecular Research, Pena e sua equipe do Departamento de Bioquímica e Imunologia da UFMG dão uma resposta singela para a discrepância: a miscigenação é baixa por causa da rígida classificação racial seguida nos Estados Unidos, herança dos tempos de escravidão e segregação explícita. Tal critério vigorou do século XVIII até o final da década de 1960, quando foi declarado inconstitucional, mas ainda influencia os costumes do país.

Conhecida como one drop rule – uma única gota de sangue negro torna o indivíduo negro –, essa forma segregacionista de categorização segundo a qual mesmo um distante trisavô negro (a proporção é de 1/32 de ascendência africana) define que o indivíduo é negro, a regra foi adotada com o pretexto de decidir o destino dos filhos de escravos com brancos, mas se tornou uma das pedras fundamentais do racismo nos EUA ao desestimular fortemente os casamentos inter-raciais. “Faz todo o sentido que aquelas amostras tenham traços tão escassos de antepassados negros ou índios. Se contivessem, não teriam sido classificados como brancos”, afirma o pesquisador.
No Brasil escravista, ao contrário, a definição de raça dependia muito da aparência do mestiço – se fosse claro, ganhava até o direito de morar na casa-grande. “As práticas sociais dos Estados Unidos e da América Latina divergem consideravelmente. Esta pesquisa mostra que a classificação racial pode desempenhar um papel importante nas relações inter-raciais e que a genética molecular é uma aliada poderosa das ciências sociais”, diz Pena.

Traços do rosto - A pesquisa com os caucasianos norte-americanos deixou uma lição para o professor da UFMG: “É mais fácil explicar um fenômeno do que prevê-lo”. No final dos anos 1990, ele também não fazia idéia do que iria encontrar quando começou a pesquisar a origem genética de 200 brasileiros brancos, de diversas origens e regiões do país. Como marcadores biológicos, os pesquisadores examinaram a variação do cromossomo Y, exclusivamente masculino, e o DNA mitocondrial, encontrado nas mitocôndrias, e considerado um dos indicadores mais precisos da herança materna. Verificou-se que, entre os brancos brasileiros, cerca de 60% das linhagens maternas são de origem ameríndia ou africana, enquanto a vasta maioria, mais de 95%, das linhagens paternas dos brancos brasileiros é de origem européia – portanto, menos que um em cada 20 brasileiros brancos tem um ascendente paterno negro ou índio. Entretanto, pelo lado materno, seis em cada dez têm ascendência negra ou índia.

Mesmo que não se traduza necessariamente em traços do rosto ou na cor da pele, a miscigenação entre os povos formadores do Brasil é mais intensa do que se imaginava. A pesquisa foi divulgada em 2000, durante as comemorações dos cinco séculos da chegada dos portugueses. Mais recentemente estudou-se a herança genética encontrada nos negros brasileiros (ver Pesquisa FAPESP 134). A análise do material genético feita por Pena e Maria Cátira Bortolini, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, mostra: 85% dos pretos brasileiros têm uma ancestral africana, mas só 47% guardam linhagens africanas herdadas de homens – o restante tem ancestrais europeus do lado masculino.

Os ancestrais europeus respondem por quase 80% da herança genética da população brasileira, revela um estudo realizado pela Universidade Católica de Brasília e publicado na revista científica "American Journal of Human Biology".

Os resultados tiveram por base a análise de amostras de ADN retiradas a 200 pessoas oriundas de zonas urbanas das cinco regiões do país.

Em entrevista ao jornal brasileiro “Folha de São Paulo”, o líder da investigação, Rinaldo Wellerson Pereira, explicou que os resultados deste estudo reforçam dados anteriores, os quais mostravam que a cor da pele, dos olhos e do cabelo tem pouca relação com a ascendência da pessoa. "No Brasil, a pigmentação da pele está, em grande medida, desacoplada da ancestralidade, por conta do grau de miscigenação", disse à “Folha de São Paulo” o coordenador do estudo.

O principal objectivo do estudo é obter uma ideia mais clara da composição genética da população brasileira para entender correlações entre o ADN e certas patologias.

A ciência já provou que a carga genética da pessoa interfere com certas substâncias medicamentosas. Nos EUA, por exemplo, já existem fármacos desenhados para actuarem em específico na população de origem africana. "Agora, imagine uma droga dessas no Brasil. Não adianta uma pessoa ter a aparência africana para você prever se ela vai responder ao remédio", explicou Rinaldo Pereira ao mesmo jornal.

ALERT Life Sciences Computing, S.A.
14 de Outubro de 2009

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