segunda-feira, 9 de novembro de 2009

VIOLÊNCIA I

Entrevista: Luís Mir
'Trégua para repartir o bolo'

O historiador Luís Mir sonha com o dia em que colocará um manto negro sobre a estátua do Cristo Redentor, localizada no alto do Morro do Corcovado. Para ele, o ato seria o melhor símbolo para demonstrar o luto de um Estado em que quase 5 mil pessoas foram assassinadas este ano, de acordo com os números oficiais da Secretaria de Segurança Pública. Além disso, mais de 55 mil pessoas sofreram lesões corporais dolosas, ou seja, vítimas de uma violência, que ele considera de guerra. Enquanto o desejo de cobrir o Cristo não acontece, esse catarinense, de 48 anos, acaba de concluir uma pesquisa de cinco anos que deu origem ao livro Guerra Civil - Estado e Trauma, da Geração Editorial. O calhamaço de quase mil páginas mostra que o país vive um conflito civil há uma década e que só conseguirá vencê-lo se for proposta uma “trégua para repartir o bolo” . “Nos últimos 50 anos, a elite concentrou excessivamente a riqueza. É preciso inserir essa população social e economicamente”, defende. De sua casa em São Paulo, ele conversou, por telefone, com o Jornal do Brasil sobre esse confronto de quadrilhas no Rio. Para ele, os tiroteios entre traficantes é resultado de um processo que teve início há 40 anos com a transferência da capital federal para Brasília. “O processo de gestação desse ovo da serpente começou há quatro décadas. A cidade não foi preparada para isso. Foi dormir capital e acordou balneário. Brasília deveria receber a capital lentamente, em 20 ou 30 anos”. Nesta entrevista, ele não hesita em se mostrar desesperançoso.
– A semana foi marcada por conflitos em vários pontos do Rio. Como resolvê-los?
– A solução é fatiar o bolo. Vivemos uma hecatombe humana e precisamos mudar isso. O Estado brasileiro é muito rico e poderia patrocinar uma redistribuição de renda. É preciso inserir social e economicamente esse povo. Você não vê o governo federal se reunindo para discutir as mortes dessas pessoas. O programa do desarmamento é importante, mas não é o suficiente. Não temos um Estado de Justiça. Vivemos uma guerra civil.
– No caso do Rio, por que o problema se arrasta ao longo dos últimos anos?
– Esse ovo da serpente, que é a violência no Rio, foi gestado há 40 anos, na transferência da capital federal para Brasília. Por favor, que fique claro que não tenho nada contra Brasília, onde um filho meu nasceu, mas o Rio não foi preparado para deixar de ser capital da República. Imagine como fica uma cidade que de um dia para o outro perde 1 milhão de empregos. Foi isso que aconteceu.
- Mas, já não houve tempo para que ela se recuperasse?
– Como? O que fizeram com o Rio é o equivalente a uma Hiroshima econômica e social. Induziram a cidade ao suicídio. Em um ano e 11 meses, o presidente Juscelino (Kubitschek) resolveu levar a capital para o interior do país. O Rio dormiu capital e acordou balneário sem qualquer transição para isso. Conto um exemplo: quando o muro de Berlim caiu e decidiram que Berlim seria a capital da Alemanha unificada, a transição para que Bonn deixasse de ser capital da então Alemanha Ocidental durou 10 anos. Serviços e funcionários foram sendo transferidos aos poucos para Berlim. Não foi uma mudança radical. Brasília deveria se tornar a capital plena em 20 ou 30 anos, e não da forma como foi feito.
– Para resolver o problema seria necessária a mobilização dos governos municipal, estadual e federal?
– As pessoas esquecem que o Rio tem características nacionais. Quando o Rio perde, todos perdem neste país. Só para lembrar, o Estado tem o segundo PIB do Brasil. Mas, parece que nada é feito. A geometria urbana do Rio criou áreas segregadas e definidas, bem distantes do núcleo econômico. É infame, indigno. Imagine se não tivesse sido descoberto o petróleo. Como estaria a situação do Estado? Quando passo pelos edifícios históricos do Centro do Rio como o Amarelinho, o Teatro Municipal ou a Biblioteca Nacional tenho vontade de chorar. Essa cidade não merece o que fazem com ela.
– A polícia não tem condições de resolver o problema?
– Para isso seria preciso uma reforma em toda polícia. No momento, a estrutura é imóvel, paramilitar. Veja nosso caso. Quando um país, como o nosso, passa por um processo de redemocratização é preciso dissolver todos os corpos repressivos. Ou seja, é preciso se criar uma nova polícia, o que não foi feito. Na Espanha, quando acabou a ditadura do general (Francisco) Franco, a polícia foi dissolvida e para marcar essa nova fase, os uniformes deixaram de ser cinzas para se tornarem azuis, simbolizando assim a mudança. Isso não aconteceu aqui. Temos uma polícia militar que ocupa morros ou realiza operações. É a maior demonstração de que estamos em guerra.
– Isso explicaria a violência que seria praticada pela polícia nessas ações em morros e favelas?
– É um dos motivos. Existem outros. Temos um problema que é a morte praticada pelas mãos do Estado. Uma coisa tem que ficar bem clara: o Estado não pode matar. Quando ele faz isso, ele institucionaliza a violência, a tortura. Nenhum agente do Estado tortura em praça pública ou na Vieira Souto. Ela acontece em locais ermos ou em quartéis da polícia. A força só pode ser utilizada em último caso. A partir do momento em que o Estado quebra a regra, ele perde o direito. Isso é guerra civil.
– A prevenção seria a melhor saída para que os confrontos fossem evitados?
– Não há dúvida. Tenho uma questão: por que os policiais são vistos nos pontos turísticos e não nas favelas? Aliás, eles só vão até elas quando ocorrem confrontos entre grupos armados. Mas não deveriam estar ali antes? Além disso, o Estado precisa acabar com essa prática de eleger o inimigo público número 1, o mais procurado. O Elias Pereira da Silva (Elias Maluco, acusado de matar o jornalista Tim Lopes) ocupou esse posto durante um bom tempo. E qual foi a solução para o problema? O que se vive no Rio é a violência praticada por vendedores de drogas que disputam mercados. Os líderes do tráfico de drogas e armas não estão nas favelas.
– O crime nos morros não é organizado?
– Se fosse, eles não estariam resolvendo as desavenças à bala. Ali, nos morros, acontece uma disputa comercial, entre os distribuidores da droga, que integram a indústria do tráfico, mas estão longe de serem os cabeças. Imagine, por exemplo, se 50 mil pessoas, que vivem direta ou indiretamente, no Rio, do tráfico? O que se faz com elas se a polícia “quebra” o negócio? Os governos precisam fazer alguma coisa. O bolo tem que ser repartido.
– Enquanto isso não acontecer, a violência só tende a crescer?
– Com certeza. As pessoas não perceberam que o sistema de saúde está em colapso. Imagine que para cada vítima de violência cerca de 200 pessoas entre parentes e amigos sofrem seqüelas. Um paciente grave pode chegar a custar R$ 1 milhão aos cofres públicos e privados se contarmos da internação até o tratamento pós-operatório.O trauma nunca se esgota. É um calvário que, por enquanto, não tem solução.
– A solução do problema passa também pela participação social?
– Nos últimos 50 anos, a elite brasileira se fechou e concentrou muita riqueza, o que impediu o crescimento desse país. Nos próximos 20, 30 anos, somos um país inviabilizado. O que percebo é que enquanto essa sociedade estiver blindada, achando que está protegida da violência em seus carros especiais ou casas com grades, ela permanecerá em silêncio. Vejo o Rio de luto. O Cristo Redentor deveria ser coberto por um manto negro para simbolizar o momento por que passa a cidade, ou melhor, esse país. (Marco Antônio Martins)

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