O Relatório Jacques Delors
Muito se fala sobre a Maçonaria ser uma escola. Se por isso se entende que nela aprendemos e apreendemos uma nova perspectiva de vida, que modificará nossas atitudes, valores, hábitos e práticas – nossa práxis social -, creio que a expressão é correta. Afinal, somos seres que aprendem e a Maçonaria é uma instituição que recruta homens bons para torná-los melhores. Isso, lato senso, é educação. Mas se muito se fala, pouco se escreve. Conheço raríssimos textos que discutem o processo formativo na Ordem. Temos, sim, muitos livros "didáticos" e muitos outros que se pretendem "manuais" de Maçonaria, mas uma reflexão sobre o processo formativo do Homem maçônico é mais rara, e como toda raridade, urgente. "Escola" é um substantivo que permite adjetivação. Num processo de reflexão, cumpre-nos deselar as qualidades que em "nossa" escola se reproduzem, para que tornemos consciente esse processo. Que tipo de Homem pretendemos formar na Maçonaria? Com vista a que objetivos? Com que meios pretendemos essa formação? Que filosofia e que ideologia orientam esse processo? As perguntas se multiplicam e esperam por respostas. A pretensão deste texto é levantar alguns pontos para essa reflexão. Estamos conscientes, contudo, que é condição absolutamente necessária (mesmo que não suficiente) para produzir alguma ação que esse trabalho seja coletivo. Quando "a bola rola", se ninguém der o segundo, o terceiro e os demais toques o jogo não acontece. Mas um início não precisa necessariamente sair do nada. A Comissão Internacional sobre a Educação para o século XXI, da UNESCO, sob o título Educação – Um tesouro a descobrir, publicou um relatório que se tornou conhecido pelo nome de seu coordenador, Jacques Delors. Iniciado em 1993 e concluído em setembro de 1996, recebeu a contribuição dos melhores especialistas do mundo, representando países de cultura e desenvolvimento os mais variados. Considerando sobretudo o irreversível processo de globalização, o relatório considera que a orientação do desenvolvimento humano se dá pela "capacidade de raciocinar e imaginar, da capacidade de discernir, do sentido das responsabilidades". Mais do que razão, o século XXI exige imaginação, discernimento e responsabilidades. A era da complexidade e da incerteza já superou em muito a era das "luzes". Os sonhos milenares do Homem, contudo, continuam vetoriando essa caminhada. Já em seu prefácio, o relatório ressalta como função precípua da educação "ante os múltiplos desafios do futuro, (...) sua construção dos ideais da paz, da liberdade e da justiça social. (...) Não como um 'remédio milagroso', não como um 'abre-te Sésamo' de um mundo que atingiu a realização de todos os seus ideais, mas, entre outros caminhos e para além deles, como uma via que conduz a um desenvolvimento humano mais harmonioso, mais autêntico, de modo a fazer recuar a pobreza, a exclusão social, as incompreensões, as opressões, as guerras...". Essas colocações são fundamentais. A idéia de um mundo pronto, a ser transmitido às novas gerações, visando reproduzir "uma ordem, uma moral e os bons costumes", conduziu sempre a pedagogias autoritárias (sejam democráticas, socialistas, comunistas ou maçônicas) que invariavelmente desqualificam "o outro". Nessa perspectiva, o "educando" não tem valores, conhecimentos, sentimentos, que mereçam consideração. Temos que "transmitir" a ele, como se fosse um depósito bancário, o "capital" de nossos conhecimentos, do qual ele deverá nos dar conta quando solicitado. O educador é "do bem", o educando "do mal"; um "sabe", outro é "ignorante"; um é "iniciado", outro "profano". A superação dessa postura por uma que reconheça que a diferença do outro não o faz menor (ou maior) e que, pelo contrário, é essa diferença que torna possível o nosso mútuo desenvolvimento, é a pedra de toque que transmutará nossa pedagogia numa andragogia, um processo educativo de "crianças" num processo educativo de "adultos". Essa transmutação verdadeiramente paradigmática não implica em que o Mestre deixará de ser Mestre e que o Aprendiz deixará de ser Aprendiz. Longe disso. É apenas nessa mudança que o Mestre poderá tornar-se um Mestre e o Aprendiz um Aprendiz. Do contrário, teremos apenas "professores" e "alunos", "adultos" e "crianças", "sábios" e "ignorantes". Na postura pedagógica "tradicional", a atitude é de "dar" ao outro um conhecimento que "possuo" e que ele não tem. Na postura andragógica, a atitude é de ajudá-lo a extrair de suas próprias potencialidades uma riqueza que nelas está contida. É isso que significa a construção de si mesmo, princípio da filosofia Socrática/Platônica e que está implícito na própria origem de nossa doutrina. Um segundo ponto deve ser bem sublinhado nesse parágrafo. Não há desenvolvimento que não seja total. Podemos "crescer" num aspecto ou em outro, mas só nos desenvolvemos por inteiro. Por isso, dizer que a construção do Homem Novo, que é o objetivo implícito na Arte Real, não tem a ver com as questões sociais, políticas e econômicas (exclusão, corrupção, pobreza), é utópico – para não dizer ideológico. Se reduzirmos a Ação Social a caridade, viramos um clube de serviço. Se reduzirmos a Política a política partidária, nos tornaremos alienados. Se reduzirmos a Economia a seus interesses exclusivamente materiais, nos tornaremos desumanos. Continua o relatório: "A Comissão considera as políticas educativas um processo permanente de enriquecimento dos conhecimentos, do saber fazer, mas também e talvez em primeiro lugar, como uma via privilegiada de construção da própria pessoa, das relações entre indivíduos e nações. Começam a delinear-se objetivos aos quais não nos negamos a aderir. Estamos no núcleo dialético desse processo: só podemos construir a nós mesmos em relação e só podemos construir relações construindo a nós mesmos. Como produzir em nós mesmos, em nossas Lojas, em nossas Potências, visando contaminar o mundo, essa atitude básica que nos oriente permanentemente à construção de nós mesmos e de nossas relações (familiares, políticas, econômicas)? Nosso modelo de mundo está exaurido. Nunca antes o mundo assistiu a tanto "crescimento" econômico. "E contudo, parece dominar no mundo um sentimento de desencanto que contras- ta com as esperanças surgidas logo a seguir à Segunda Guerra Mundial. Pode-se, pois, falar de desilusões do progresso, no plano econômico e social. O aumento do desemprego e dos fenômenos de exclusão social, nos países ricos, atesta-o. A persistência das desigualdades de desenvolvimento no mundo, confirma-o". Qualquer mudança, como nós Maçons bem sabemos, passa por um ato de Vontade. Como que a adivinhar isso, nos diz o relatório: "Mas como aprender a viver juntos nesta 'aldeia global', se não somos capazes de viver nas comunidades naturais a que pertencemos: nação, região, cidade, aldeia, vizinhança? A questão central da democracia é saber se queremos, se podemos participar da vida em comunidade. Querê-lo ou não, é bom não o esquecer, depende do sentido de responsabilidade de cada um". O que conduz alguém se Iniciar na Arte Real é essa Vontade? Como discernir entre as várias motivações possíveis (algumas não tão nobres)? Mais: como desenvolver essa Vontade de forma que ela cresça e contamine seu ambiente? Lembro-me de que quando era criança, no interior do Paraná, ouvia os adultos falarem com reverência sobre alguém: ele é Maçom! Sempre se referiam a alguém socialmente "importante", isto é, socialmente significativo. Ser Maçom é possuir um sentimento de responsabilidade para com o mundo. É "ter tempo" e "sentir vontade" de participar de sua família, de seu condomínio, dos movimentos de seu bairro, de sua cidade, etc. É ser alguém significativo. Como desenvolver esse sentimento de responsabilidade para com o mundo? Como construir essa atitude ecológica? Isso não é fácil. O relatório Jacques Delors levanta essa questão. Tratando das Tensões a ultrapassar, cerne da problemática do século XXI, releva: "A tensão entre o global e o local: tornar-se pouco a pouco cidadão do mundo sem perder as suas raízes (...). A tensão entre o universal e o singular: (...) [manter] a riqueza das suas tradições e de sua própria cultura ameaçada, se não tivermos cuidado, pelas evoluções em curso. A tensão entre tradição e modernidade tem origem na mesma problemática: adaptar-se sem se negar a si mesmo, construir a sua autonomia em dialética com a liberdade e a evolução do outro, dominar o progresso científico. (...) A tensão entre as soluções a curto e a longo prazo, tensão eterna, mas alimentada hoje em dia pelo domínio do efêmero e do instantâneo, num contexto onde o excesso de informações e emoções efêmeras leva a uma constante concentração sobre os problemas imediatos. (...) A tensão entre a indispensável competição e o cuidado com a igualdade de oportunidades. (...) A tensão entre o extraordinário desenvolvimento dos conhecimentos e as capacidades de assimilação pelo homem. A Comissão não resistiu à tentação de acrescentar novas disciplinas, como conhecimento de si mesmo e dos meios de manter a saúde física e psicológica, ou mesmo matérias que levem a conhecer melhor e preservar o meio ambiente natural. (...) Finalmente, e trata-se, também neste caso, de uma realidade permanente, a tensão entre o espiritual e o material. (...) Cabe à educação a nobre tarefa de despertar em todos, segundo as tradições e convicções de cada um, respeitando inteiramente o pluralismo, esta elevação do pensamento e do espírito para o universal e para uma espécie de superação de si mesmo". Colocados num longo parágrafo temas que no relatório vêm em parágrafos distintos, se pretendeu reunir as tensões fundamentais da problemática moderna. Da sabedoria de resolvê-las depende o bem estar e, talvez, a própria sobrevivência da humanidade. Não há processo educacional que possa olvidá-las. Repisa sempre o relatório na questão fundamental desse novo paradigma: "Tudo nos leva, pois, a dar novo valor à dimensão ética e cultural da educação e, deste modo, a dar efetivamente a cada um os meios de compreender o outro, na sua especificidade, e de compreender o mundo na sua marcha caótica para uma certa unidade. Mas antes, é preciso começar por se conhecer a si próprio, numa espécie de viagem interior guiada pelo conhecimento, pela meditação e pelo exercício da autocrítica". Do ponto de vista maçônico poderíamos definir melhor nossa tarefa? Cabe aprendermos a executá-la. Aqui, novamente, a razão tem que se aliar à imaginação. A esta altura das reflexões, o relatório resume os quatro pilares considerados básicos para essa tarefa: - o grande pilar é o aprender a viver juntos, desenvolvendo o conhecimento acerca dos outros, da sua história, tradições e espiritualidade. Principalmente, aprendendo a respeitar as diferenças.
- O outro pilar, o primeiro, é o aprender a conhecer, no sentido tradicional de conhecer a realidade, as tecnologias, a política, a cultura, estar afinado com seu tempo. - Em seguida, aprender a fazer, não só no sentido profissional, mas adquirir uma competência ampla que permita o trabalho em equipe, o pensar junto, o fazer coletivo. - Finalmente, e mais importante, o aprender a ser. Desenvolver todos os talentos latentes em si. Conhecer-se o mais profundamente possível. E, acrescentamos, amar-se, para poder amar aos demais. Mas é preciso cuidado, pois"... demasiadas reformas em cascata acabam por matar a reforma, pois não dão ao sistema o tempo necessário para se impregnar do novo espírito, nem para pôr todos os atores à altura de nela participarem. Por outro lado, como mostram os insucessos do passado, muitos reformadores, optando por soluções demasiado radicais ou teóricas, não tomam em consideração os úteis ensinamentos da experiência, ou rejeitam as aquisições positivas herdadas do passado". O projeto de lapidar o Homem e o mundo é um projeto secular, não é algo para prazo determinado. Por isso, ele depende mais de Vontade e Atitudes do que de instrumentos e medidas. Ser secular, contudo, não significa que não deva começar já.
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