quarta-feira, 21 de abril de 2010

Brasília, 50 anos: nossa conquista do Oeste

Por Tereza Cruvinel
Correio Braziliense - 05/09/2009
Jornalista, diretora-presidente da Empresa Brasil de Comunicação (EBC)


Os que não provaram do pó ou não pisaram na lama, os que não sofreram o açoite daqueles ventos primitivos, os que não suaram sob a pressão do tempo e o rumor cortante das máquinas, os que não calaram a saudade de suas terras, os que não precisavam de esperanças, os que não sentiram o frêmito de fazer Brasília, riscando as formas ou colocando tijolo e cimento, os que não sabem como tudo aconteceu, esses e outros precisam compreender e compartilhar o júbilo pelos 50 anos da cidade que mudou vidas e mudou o Brasil, dando-nos a posse dele por inteiro. Esta é uma festa do Brasil. Devia ser.

Há 50 anos, vivíamos como caranguejos na costa civilizada, ou que se tomava por tal. Nas sobrevivências da Mata Atlântica consolidara-se, em mais de três séculos, uma franja urbanizada que mal passava do meridiano 43, ou de Belo Horizonte, em sentido vertical. Dali para o Oeste, apenas ilhas de ocupação. Os bandeirantes, no século 18, fincaram povoações e vilas que se tornaram cidades isoladas nas lonjuras do Centro-Oeste. Os portugueses colonizaram o litoral do Grão-Pará, um polo que se irradiou de Belém pelas margens do Amazonas acima. O polo civilizatório do Maranhão, onde pisaram também os franceses, ficou circunscrito ao litoral. O resto do Norte, floresta e imensidão. Da riqueza fugaz da borracha, no século 19, restou uma presença maior no Amazonas e no Acre, mas o isolamento voltou a prevalecer. Tínhamos o Brasil do mapa e o Brasil real e soberano, bem menor.

Mas havia, sobretudo, a contradição cultural entre esses brasis. O litorâneo tinha charme e achava que tinha futuro. O do interior dormitava. “Eu nasci na Idade Média”, gosto de brincar com meu filho que, como todos os nascidos na era digital, não concebe o mundo sem internet, celular, computadores, skype e toda a parafernália tecnológica que rege nossas vidas hoje.

Explico: todo esse vasto círculo que hoje abarca Goiás, Mato Grosso e Tocantins, o oeste de Minas e o sul da Bahia, tudo isso era Idade Média. Furavam as trevas os lampejos que chegavam do outro Brasil, os mascates, as ondas do rádio, algumas linhas de trem e raras estradas. Estudar era para poucos e o trabalho era basicamente o rural. Nestas Minas que são Gerais, onde fica o grande sertão de Guimarães Rosa, vivi o finalzinho da Idade Média, rompida com a construção de Brasília. Usei vestidos tecidos ao tear após o trato primitivo do algodão: plantar, colher, descaroçar, cardar, fiar e tecer. E depois a costura, nas velhas máquinas Elgin. Sei fazer quase tudo isso, menos tecer bem. Recentemente plantei dois pés de algodão no Lago Norte, para lembrar o amarelo da flor e a textura do algodão cru. Nesse Brasil esquecido, as distâncias se mediam em léguas e eram percorridas a cavalo. Os médicos eram raros e as crianças eram trazidas ao mundo pelas abnegadas parteiras. Minha avó fez mais de 300 partos. Chamada de madrugada, partia numa mula baia com seus apetrechos, a tesoura esterilizada no fogo. Se os homens plantavam, colhiam e cuidavam do gado, cabia às mulheres tarefas como abanar feijão, socar arroz no pilão, torrar café, fazer os queijos, cuidar da casa e de dezenas de filhos. Muitos morriam ao nascer. Minha mãe perdeu duas meninas depois de mim. Era esse o verbo: perder. Quem sobrevivia, ganhava.

O que mudou esse mundo foi a construção de Brasília. Juscelino Kubitschek fez a promessa em campanha, no comício de Jutaí-Go, mas por ser o sonho antigo é que o Tonico fez a pergunta que lhe arrancou a promessa. Vinha dos inconfidentes, vinha da Constituição de 1891 porque era imperativo expandir o Brasil da costa. Meu avô, nos anos 20, levava e trazia gado entre Minas e Formosa dos Couros, aqui perto de Brasília. Viu a pedra fundamental ser lançada em Planaltina. O desafio era de desenvolvimento e soberania. Ou tomávamos conta deste país ou tomariam conta dele. Juscelino teve a lucidez de compreendê-lo e a audácia de enfrentá-lo.

Essas reminiscências são para dizer que a festa dos 50 anos, foi sendo preparada com esmero por seus governantes e a participação entusiasmada dos brasilienses. 50 foram os convidados para integrar o conselho consultivo da festa aceitaram de pronto. Aceitei, honrada como cidadã brasiliense e como dirigente da TV Brasil. A TV pública contribuirá com ampla cobertura dos eventos e a produção de conteúdos audiovisuais que resgatem a memória desse feito que mudou a fisionomia do Brasil. Mas essa festa não deve ser apenas nossa. Deve ser uma festa do Brasil, celebração de nossa capacidade realizadora, do poder transformador da união entre as energias de um povo, o talento de seus gênios e a lucidez de seus dirigentes políticos. Para isso, precisamos cada vez mais contar, em todas as linguagens, a saga da construção de Brasília.

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