quarta-feira, 21 de abril de 2010

Tiradentes: desconstruindo o mito

Jáder Rezende - Repórter

Há exatos 218 anos, no dia 21 de abril de 1792, aos 46 anos, Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, devidamente escoltado e barbeado, atravessou o Largo do Lampadário, no Rio de Janeiro, e subiu 21 degraus em direção à forca. Foi executado e esquartejado para servir de exemplo aos que ousassem se insurgir contra a Coroa Portuguesa. No início da Nova República, o homem que livrou os demais inconfidentes do mesmo destino foi ressuscitado e retratado pelo célebre pintor Pedro Américo com feições semelhantes às de Cristo. Surgia então o maior herói da Nação, o grande mártir da independência do Brasil - único com direito a feriado nacional. Além do verdadeiro rosto, até hoje desconhecido - em vida, nunca foi retratado -, muitos mistérios cercam a vida desse importante personagem. Nos últimos anos, historiadores trouxeram à tona surpreendentes facetas do inconfidente, detalhes que não constam nos livros didáticos e que podem contribuir para a desconstrução de um mito. Doutora em História pela UFMG, a escritora Adriana Romeiro observa que o herói Tiradentes ainda continua povoando a fantasia dos mineiros, sobretudo as questões relacionadas à política. Ela lembra a pendenga entre Itamar Franco e o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, quando então o ex-presidente e governador de Minas evocou a figura de Tiradentes para afirmar a autonomia do Estado perante o Governo de FH. «Tiradentes é um personagem muito poderoso no imaginário mineiro, mas que está sendo esvaziado», diz Romeiro, considerando que estudos mais recentes seguem na contramão dos mitos. «Eles estão aí e nós temos a missão de desmontá-los, mostrar esse processo de fabricação, mas existe resistência do senso comum, isso incomoda as pessoas», afirma a historiadora - autora do Dicionário Histórico das Minas Gerais, em parceria com Ângela Vianna Botelho (Autêntica Editora).Para a coordenadora de Pós-Graduação do Departamento de História da Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop), Andréa Lisly Gonçalves, por mais que pesem as contradições, o «Patrono Cívico da Nação» faz jus ao título que ostenta. «É um personagem passível de ser apropriado por diferentes grupos sociais. Teve atuação muito importante na Conjuração Mineira, disseminou o movimento conspiratório por várias regiões. Foi um mito criado na República, mas se não tivesse apelo popular, dificilmente se sustentaria», diz. Ela observa que Tiradentes era um homem de caráter irrequieto, compromissado com idéias revolucionárias e liberais, relacionadas, principalmente, ao Iluminismo. «Como não dominava uma segunda língua, Tiradentes costumava abordar amigos que falavam e liam francês para traduzir os iluministas. Não se pode dizer que era um homem ignorante, já que se interessava também por literatura jurídica, filosofia», diz. O Museu da Inconfidência de Ouro Preto guarda em seu acervo exemplar de compilações de leis norte-americanas publicadas na França com anotações atribuídas a Tiradentes. Segundo a historiadora, embora seja a figura maior da Polícia Militar, Tiradentes foi também símbolo de movimentos da história recente considerados ilegais, como o movimento de esquerda que insurgiu na década de 1970 e de um grupo de guerrilheiros da década de 1960. «O que contribuiu para ele ser eleito patrono da PM foi, obviamente, o fato de ter sido uma figura militar. Mas trata-se de um herói legítimo, que pode personificar as mais diversas ideologias».

Fama de exaltado e mal-humorado

As mais recentes publicações sobre a Inconfidência Mineira revelam que Tiradentes não era tão carismático e agradável como se apregoa. Sua fama era de exaltado e mal-humorado. O patrono da Polícia Militar chegou a se insurgir contra a corporação - na época Regimento de Cavalaria Paga, na qual serviu como alferes, o que equivaleria hoje ao posto de segundo-tenente -, reivindicando aumento de salário. Na tentativa de cooptar adeptos ao levante contra a Coroa Portuguesa, fez várias promessas mesmo sabendo que não poderia honrá-las.«Tiradentes tinha um gênio de cão, apresentava um olhar espantado e não ostentava a tão famosa barba retratada por Pedro Américo. Não se entendia com as pessoas, era muito nervoso e com certo pendor para a polêmica. Chegou a tentar fazer tráfico de influência, com falsas promessas de trabalho para pessoas que participassem do levante», diz o especialista em Inconfidência Mineira, diretor da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e autor do livro «O Manto de Penélope» (Companhia das Letras), no qual confronta a imagem mítica e heróica, historicamente construída em torno do revolucionário, com o contorno mais humano adquirido pelo mesmo em estudos mais recentes. Na mesma obra o autor revela que o alferes estava mais próximo das instituições do antigo regime português do que dos ideais do liberalismo, da democracia e da independência.Em suas pesquisas veio à tona o fato de que na Cavalaria Paga Tiradentes recebia o soldo de 210 mil réis por trimestre - dinheiro que, segundo Furtado, poderia ser empregado na compra de três escravos (à época, um escravo produtivo, com cerca de 40 anos, valia, em média, R$ 70 mil réis) ou sete cavalos de carga (que custava cerca de 30 mil réis). «Considerando que um cavalo para essa finalidade vale hoje entre R$ 2 mil e R$ 3 mil, pode-se dizer que Tiradentes era um profissional de baixa remuneração, mas para o padrão da sociedade colonial, não era um salário irrisório. Ele recebia o que ganha hoje um tenente da Polícia Militar», diz. Um segundo-tenente da PM recebe hoje R$ 2.888,39, soldo bruto, considerado baixo para a grande maioria dos policiais que ocupam esse cargo. Uma carta de Tiradentes reivindicando aumento de salário faz parte do acervo do Museu da PM, que funciona no Batalhão do Bairro Prado, na Região Noroeste de Belo Horizonte.Furtado observa ainda que Tiradentes, ao ser preso acusado de traição, tinha um patrimônio equivalente ao do ouvidor de Vila Rica, Tomás Antônio Gonzaga (o Dirceu de Marília) e era dono de quatro escravos, «além de muita tranqueira». «Naquela época o prestígio não era associado à riqueza, mas a títulos de fidalguia. Além disso, Tiradentes não era nada sofisticado», conta, revelando ainda que Tiradentes não foi o principal líder da Inconfidência Mineira. «Ele se tornou herói no processo judicial, na medida em que deu mais publicidade ao levante. Mas foi um homem muito corajoso, o que lhe deu uma certa notoriedade». Entre seus feitos militares heróicos, Furtado destaca o combate à quadrilha da Mantiqueira, um grupo de assaltantes que aterrorizava os caminhos das Minas no início da década de 1780. Em 1784 ele foi denunciado pelo padre Domingos Vidal de Barbosa Lage - que veio a se tornar seu colega de Inconfidência - por uso de violência, tirania e arbitrariedade contra um sacerdote moribundo e seu irmão, a mando de um superior. Pouco depois desse episódio, ainda inconformado com o baixo salário, Tiradentes abandonou a carreira militar para se dedicar a carreira de «empreendedor de obras e dono de moinho».

Um comentário:

  1. Muito bom saber que aquela figura que foi me dada na escola como a representaçao do próprio Jesus, com o Quilombo dos Palmares, não passa de mais uma farsa narrativa que "heroiza" figuras duvidosas e questionáveis. Obrigado

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